Uma Igreja para Todas as Nações: O Caminho da Interculturalidade
MISSÃO E LIDERANÇA GLOBALPOVOS E MOVIMENTOS
António Rodolpho
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Uma Igreja para todas as nações
O caminho da interculturalidade
Estabelecer igrejas interculturais é assunto de extrema importância para o presente momento histórico, caracterizado por uma elevada mobilidade das populações a nível global. Como decorrência dessa onda de mobilidade, o número de estrangeiros em Portugal aumentou exponencialmente nos últimos anos, e já representa cerca de 15% da população! Por várias razões, isto tem dado origem a uma crescente tensão social. Portugal, um país de emigrantes, agora terá de aprender a lidar com a imigração.
Haverá evidências de que é imperativo praticar uma "nova" disciplina espiritual?
Claro que esta onda migratória tem implicações demográficas nas igrejas evangélicas portuguesas. Pesquisas recentes da Aliança Evangélica Portuguesa revelam que há um crescimento acentuado da frequência aos cultos, e também a abertura de novas congregações, especialmente por causa dos imigrantes crentes. Naturalmente, existe uma interação entre os cristãos nacionais e os estrangeiros, relação esta marcada por momentos inspiradores de acolhimento recíproco e unidade cristã, mas também por episódios tristes de tensão, incompreensão e hostilidade mútuas.
Esta é uma realidade presente em diversos lugares do planeta, mas que tem um significado especial no hemisfério norte, rico e secularizado, no qual, em geral, as igrejas nacionais apresentam um declínio acentuado nas últimas décadas, mas onde as igrejas de imigrantes, as chamadas igrejas das diásporas, crescem a um ritmo surpreendente. O relatório missiológico “Europe 2021”1 aponta a dificuldade dessas igrejas étnicas alcançarem os europeus com o evangelho, e destaca a necessidade imediata de se buscar a cooperação e a unidade entre as igrejas das diferentes diásporas e as igrejas nacionais para a reevangelização do continente, o que requer intencionalidade e oração.


É natural e expectável que esta multiculturalidade traga consigo uma infinidade de desafios, diante dos quais a Igreja de Jesus Cristo deve se posicionar de forma a refletir o amor do seu Senhor. Neste caminho da reconciliação e da convergência, certamente há uma disciplina espiritual específica que se faz necessário desenvolver por quem chega e por quem recebe, a que podemos chamar disciplina espiritual da interculturalidade.
Não há dúvidas que a disciplina espiritual em causa encontra fundamento no texto de Gálatas 3:28, no qual Paulo afirma que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.”
De maneira idêntica, este necessário exercício espiritual está intimamente associado à sensibilidade cultural do Espírito Santo por ocasião do Pentecostes descrito em Atos 2, quando os visitantes de todos os países do mundo presentes em Jerusalém “ouviram as maravilhas de Deus através dos discípulos de Jesus na sua própria língua materna.” Ora, se o Espírito Santo está presente na vida dos cristãos hoje, então não haverá espaço para a indiferença ou preconceito com relação às pessoas de outras culturas.


O livro de Rute fornece, também, algumas orientações práticas para esta disciplina espiritual da interculturalidade. Interessante notar que no primeiro capítulo do livro verificam-se 3 movimentos migratórios: a família de Elimeleque e Noemi parte de Belém para Moabe; após 10 anos, Noemi regressa a Belém com o coração cheio de amargura (Mara), por causa das tragédias ocorridas, e, como terceiro movimento, Rute decide acompanhar a sogra Noemi e emigra para Belém. Em cada um desses movimentos há muitas ilações úteis que não serão exploradas neste curto artigo, mas que valem a nossa atenção num outro momento.
A deslocação de Belém para Moabe foi motivada pela fome. Muitos emigram de seus países de origem por necessidade económica ou de segurança. E muitos enfrentam tragédias, como por exemplo aqueles que tentam cruzar o Mediterrâneo em embarcações precárias. Em geral, este tipo de imigrante está mais inclinado a receber do que a dar. Por outro lado, quem emigra por paixão, como Rute, está pronto a se doar ao novo país.
O que aprendemos com o livro de Rute
Como podemos praticar a disciplina espiritual da interculturalidade
De forma resumida, eis alguns “inputs” sobre a disciplina espiritual da interculturalidade extraídos do livro de Rute, e que facilitarão a aproximação frutífera entre as igrejas das diásporas e as igrejas nacionais, ou entre os nacionais e os estrangeiros em uma mesma comunidade cristã:
A importância de um mentor cultural
Logo no primeiro capítulo, verifica-se que a família de Noemi se desloca de Belém para Moabe por causa da fome. Noemi sofre perdas trágicas em Moabe, com a morte do marido e dos dois filhos, e decide voltar para Belém. A sua nora Rute, uma moabita, resolve acompanhá-la, e faz a maior declaração de intenção de ajustamento cultural conhecida: “O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rute 1:16)
Rute encontra em Noemi uma espécie de mentora cultural. Noemi agora conhece aspectos de ambas as culturas e pode orientar Rute na sua desejada adaptação a Belém.
O livro de Daniel reforça esta ideia. Daniel recebeu um treinamento de 3 anos antes de começar a servir o rei na Babilónia. Lemos no primeiro capítulo que o chefe dos oficiais da corte, Aspenaz, deveria ensinar Daniel e outros israelitas “a língua e a literatura dos babilónios…”
Este é um princípio importante para todos os que experimentam uma transição cultural, especialmente, neste caso, para os líderes das igrejas das diásporas. Com a humildade de Rute, devem buscar oportunidades de mentoria cultural no meio evangélico nacional, ou fora dele, formal ou informalmente, o que diminuirá o choque cultural e facilitará o processo de aculturação. Claro que a encarnação de Cristo, com a sua imersão total na cultura humana, é a principal fonte de inspiração para buscar um ou mais mentores culturais no país de acolhimento.
A importância de encorajar os estrangeiros
No segundo capítulo do livro, Rute coloca em prática os conselhos de Noemi para a vida diária, para obter o necessário sustento na nova cultura. Ela segue as regras e tradições locais. Foi nessa condição que ela conhece o dono das terras onde foi recolher alimentos, Boaz, que expressa o seu acolhimento e reconhecimento: Estou impressionado – “como deixou o seu pai, a sua mãe e a sua terra natal para viver com um povo que pouco conhecia. O Senhor lhe retribua o que você tem feito.” (Rute 2:11,12)
Aqui está a parte que cabe ao nacional que recebe estrangeiros: acolhimento, interesse em saber a sua história, apoio e encorajamento. Todo estrangeiro necessita experimentar este tipo hospitalidade na nova cultura, especialmente nas igrejas.
Então Rute disse a Boaz: "Continue eu a ser bem acolhida, meu senhor! O senhor me deu ânimo e encorajamento…” (Rute 2:13 …)
Conexão do nacional com o estrangeiro
No terceiro capítulo, Rute, ao seguir as orientações da sua mentora cultural, e portanto, respeitando as tradições locais, abre espaço para um entendimento de intimidade com Boaz que, por sua vez, promete agir de imediato – ele tira os obstáculos do caminho. Há possibilidade de uma cooperação frutífera quando os muros de separação são identificados e derrubados!
Os nacionais e os estrangeiros devem juntos procurar remover os preconceitos e barreiras que impedem a comunhão e a colaboração. Em alguns casos, o arrependimento, o perdão e a reconciliação são necessários.
A igreja composta por nacionais não deve ignorar os estrangeiros no seu meio e à sua volta, e vice-versa. As igrejas nacionais e as igrejas étnicas ou das diásporas devem aproximar-se e buscar entendimento fraternal e amizade com vistas à cooperação em favor do Reino de Deus!
Parceria intercultural e frutos
Finalmente Boaz e Rute casam-se. Tiveram um filho e lhe deram o nome de Obede. Este foi o pai de Jessé, pai de Davi. (Rute 4:17…) Jesus Cristo é descendente do rei Davi. Por esta razão, Rute é uma das poucas mulheres a ser mencionada na linhagem de Jesus, mesmo sendo uma estrangeira.
A convivência e a cooperação que produz frutos é possível. A unidade da igreja de Cristo já é uma realidade espiritual, que pode ser experimentada de forma criativa. Talvez esta cooperação intercultural seja uma semente que leve 2 ou 3 gerações para florescer, mas certamente a disciplina de caminhar juntos vai revelar Cristo às nações.
Viver com as lentes da interculturalidade
Quando o livro de Rute é lido com as lentes da interculturalidade, afloram alguns princípios e práticas importantes para os cristãos nacionais e estrangeiros, em um determinado contexto, convergirem para uma igreja intercultural.
Cabe destacar que o interculturalismo ultrapassa os horizontes do multiculturalismo. Esses dois conceitos assemelham-se nisto: que a sociedade não é homogênea, mas sim plural. Contudo, há distinções claras entre ambos, já que a multiculturalidade expressa as diferenças como um facto objetivo e a interculturalidade propõe que estas diferenças se traduzam em plena integração das culturas, com uma troca frutífera para ambas. Neste sentido, a interculturalidade pretende criar um modo de convivência no qual nenhum grupo se sinta discriminado por algum aspecto diferenciador. Ou seja, todas as culturas merecem o mesmo respeito e não é aceitável qualquer tipo de desigualdade.
Portanto, não é possível continuar a ser uma igreja monocultural num ambiente multicultural. Somente uma igreja intercultural poderá ter relevância e contribuir para a vivência e o avanço do evangelho.
Referências:
Europe 2021 A Missiological Report, de Jim Memory, ECM -https://www.ecmi.org/pt/europe-2021-a-missiological-report, acessado em 29/09/2021
O Movimento Lausanne Portugal disponibiliza workshops estratégicos, adaptados ao contexto, para ajudar líderes e equipas a compreender melhor as religiões e culturas emergentes em Portugal — e a discernir formas práticas de acolhimento, testemunho cristão e discipulado.
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António Rodolpho
Missionário na Europa desde 1997. É luso-brasileiro. É casado com Maria Leão, sendo pais de 3 filhas, sogros de 3 genros e avós de 6 netos.
É engenheiro civil com pós-graduação em gestão de empresas. Graduado em Teologia, é professor do Seminário Teológico Baptista de Queluz. É o representante da Ibéria (Portugal e Espanha) na Junta Diretiva do COMIBAM Internacional. Integra a equipa da Assessoria de Missões da Aliança Evangélica Portuguesa e o Conselho Administrativo da MEVIC, estando também ligado ao Member Care Portugal.
É pastor da Igreja Baptista Vida Nova, em Cascais.
E-mail: antonio.rodolpho@gmail.com