O "ethos" dos apóstolos e da Igreja
Qual é a marca cultural que distingue a Igreja de Cristo? Partindo do exemplo dos apóstolos, Vacilius Santos explora o conceito de “ethos” — a identidade e cultura que moldam o Corpo de Cristo — e como ele se manifesta (ou se perde) nas igrejas de hoje. Com base bíblica sólida e exemplos práticos, o autor aborda os sinais de saúde e doença espiritual, os perigos de lideranças tóxicas e o equilíbrio entre responsabilidade individual e coletiva. Um convite à reflexão e à ação, para que as nossas comunidades sejam “Igrejas Tov” — espaços de bondade, serviço e amor genuíno.
SAÚDE DA IGREJA
Vacílius Santos
8/12/20258 min read


O "ethos" dos apóstolos e da Igreja
Quem não se delicia com as histórias de “Atos dos Apóstolos”?
Uma leitura mais cuidadosa deste extraordinário livro escrito por Lucas, pode mostrar-nos mais do que “atos”, ela pode nos revelar o “ethos” dos apóstolos e da igreja.
O “ethos”, era usado na Grécia Antiga como um lugar onde a pessoa vivia, e depois passou a ser aplicado aos traços comportamentais que definem uma comunidade, um povo.
Qual seria o “ethos” dos apóstolos de Cristo? Qual seria o “traço cultural”, a marca dos apóstolos de Cristo?
Eles deviam, dentre todas as marcas, ter andado com Cristo, experimentado os sinais e maravilhas, e sido testemunhas da ressurreição (Atos 1:15-26; 1 Coríntios 9:1,2; 15:7,8; 2 Coríntios 12:12; Gálatas 1).
Apesar de nenhum de nós ter vivido “ao mesmo tempo que Cristo”, a nossa vida - individualmente e como igreja - foi transformada por Ele, temos uma identidade. Faz, por isso, também sentido refletir sobre qual seria o “ethos” da igreja?
Qual seria o traço cultural de um povo que se chama povo de Deus?
O “ethos” comunica o que Max Weber chama de “o inconsciente coletivo” da sociedade.
Assim acontece com a Igreja de Cristo. Temos marcas que nos definem. E, também, é o que acontece com cada igreja local. Há um “ethos”, um “inconsciente coletivo” que é maior do que o que aparece.
O que é visto, o palco, sugere muito do traço comportamental de uma igreja local, entretanto, pode acontecer uma espécie de “aberração congénita” que é maior que as palavras, quando um bebé na fase intrauterina já apresenta certas dificuldades estruturais, antes que tenha a liberdade de escolher por uma vida mais saudável.
O Movimento Lausanne Portugal disponibiliza workshops estratégicos, adaptados ao contexto, para ajudar líderes e equipas a discernir e cultivar um "ethos" saudável — inspirado nos apóstolos e na igreja primitiva — que promova comunhão, liderança serva e relacionamentos marcados pela bondade.
Um convite a refletir sobre a saúde espiritual e relacional das nossas comunidades e a viver o evangelho de forma prática e transformadora.
Contacta-nos - aqui.
Há Igrejas tóxicas?
O livro “Uma Igreja Tov” dos autores Laura McKnight Barringer e Scot McKnight, demonstra o lado bom das igrejas “tovs” (do hebraico tov = bondade) cuja cultura é de bondade.
E por outro lado, também demonstra tantos outros exemplos de igrejas cuja cultura seria a manipulação.
Quando falamos de “ethos” estamos falando da cultura desenvolvida nas “entrelinhas”, e esta pode ser saudável ou não.
Discernindo o corpo
A igreja de Corinto trazia um “ethos” de confusão, de egoísmo, de orgulho, de individualismo. Uma igreja repleta de dons e manifestações do Espírito que, por outro lado, não apresenta o fruto do Espírito.
E por isso, na Ceia, Paulo convida-os para “discenir o corpo” (1Coríntios 11.29). O corpo de Cristo, Igreja.






Vacilius Santos
Missionário, professor e escritor, formado em Letras, Pedagogia e Teologia.
Serve como diretor da Casa de Hospitalidade "Canto da Rola", pastor na CCLX (Casais/Coruche) e coordenador do MemberCare Portugal
A propósito, do individualismo que havia em Corinto, o discurso ocidental tende ao individualismo que, é diferente de uma individualidade saudável, e desintegra a proposta de membros de um só Corpo. A igreja de Corinto precisou ser confrontada nisto.
A Igreja do presente século tem-se diluído tal como a sociedade líquida, onde está inserida, e por isso, não é incomum encontrarmos igrejas tóxicas.
Há igrejas que adoecem os seus membros, e ser saudável ali é um desafio solitário, o que, em si, compromete a proposta de Corpo de Cristo.
O pêndulo da Galácia
Já a Igreja da Galácia, no contraponto do pêndulo, precisou ser alertada, para que aqueles que trabalhavam pelo coletivo, não cometessem deslizes na sua individualidade.
Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espírito de mansidão; olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado. (Gálatas 6:1)
A grande omissão
Embora os discípulos tenham sido chamados, particularmente, a Grande Comissão (Mt. 28:19-20) foi entregue aos discípulos num contexto de grupo:
“E os onze discípulos partiram para a Galiléia, para o monte que Jesus lhes tinha designado. E, quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram. E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e na terra.” (Mt. 28:16-18)
A omissão na Grande Comissão pode acontecer na individualidade, mas pode dizer respeito ao “ethos” de uma igreja local também, que não se mobiliza para servir e ser relevante a Comunidade à sua volta.




O pêndulo amplia-se na Galácia, quando Paulo destaca que cada um levará a sua própria carga, sem deixar de levar a do outro.
Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo. Porque, se alguém cuida ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo. Mas prove cada um a sua própria obra, e terá glória só em si mesmo, e não noutro. Porque cada qual levará a sua própria carga.” (Gl. 6:2-5)
A vida cristã precisa ser equilibrada, de maneira pendular, ora a responsabilidade individual é evocada, ora a responsabilidade coletiva.
O “ethos” não pode ser doentio a ponto de desanimar ou provar as iniciativas individuais, e por isso Paulo sofria ali “dores de parto” (Gl. 4.19) a favor da saúde da igreja.
A culpa de um Diótrefes
Mesmo no caso de Diótrefes que foi crucial no adoecimento de uma igreja local, no contraponto estava Gaio, cuja individualidade amargava a opressão de um líder que dominava para o mal (3 João).
“Tenho escrito à igreja; mas Diótrefes, que procura ter entre eles o primado, não nos recebe. Por isso, se eu for, trarei à memória as obras que ele faz, proferindo contra nós palavras maliciosas; e, não contente com isto, não recebe os irmãos, e impede os que querem recebê-los, e os lança fora da igreja.” (3 João 9,10)
O que se verifica nesta igreja local é que ações individuais de confrontação podem combater o “ethos” de uma doença crônica, coletivamente.
O “cancro” de uma liderança dominadora precisa ser extirpado.
Cuidado com líderes que gostam muito de usar a expressão “lealdade”, especialmente quando associada a obediência à sua própria liderança.
Um sinal de saúde coletiva é quando a liderança se preocupa mais com a lealdade a Cristo e ao Evangelho que com a lealdade à igreja e à liderança local.
Na passarela de Tessalónica
Que tal olharmos para esta igreja saudável como referência, cuja coletividade era saudável?
Há igreja e igreja? Sim. Há igreja e igreja. Algumas saudáveis, outras doentes, moribundas.
“ Sempre damos graças a Deus por vós todos, fazendo menção de vós em nossas orações,3 Lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho do amor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nosso Deus e Pai” (1 Ts. 1:2)
Tessalónica possuía um “ethos” de igreja saudável.
Todos sabemos que o novo nascimento, a obra da justificação pela fé, a adoção de filhos, a remissão e a redenção pelo sangue de Cristo que é feita a favor de todos, deve ser assumida, individualmente.
Entretanto, a partir daí a caminhada passa a ser coletiva. Vida cristã individual e sozinha tem o seu lugar na solitude, e também acontece na vida de igreja, com relacionamento.


Aliás, quando Paulo disse: “desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” (Fp. 2:12), todo o contexto é um desafio à coletividade.
O “ethos” de uma igreja saudável implica em relacionamento.
A salvação é individual, mas o desenvolvimento é coletivo
Mandamentos de Mutualidade
Qual é a consideração final mais óbvia?
Não existe crescimento espiritual, espiritualidade saudável, sem relacionamento vertical com Deus, e horizontal com a comunidade dos discípulos de Jesus.
Neste item vale a pena fazermos uma análise do quanto estamos comprometidos com os cerca de 48 mandamentos de mutualidade, que aparecem no Novo Testamento, com a marca de “uns para com os outros” ou “reciprocamente” e “mutuamente”, tais como os dois que seguem:
“A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração.” (Cl. 3.16)
“Por isso exortai-vos uns aos outros, e edificai-vos uns aos outros, como também o fazeis.” (1 Ts. 5:11)
Sendo assim, podemos considerar duas questões práticas finais. Uma que ajudará no “ethos” da igreja enquanto povo, e outra que tem mais a ver com a liderança.
O “ethos” da Igreja começa com o Orvalho de Hermom
O tão evocado Salmo 133 reivindica um chamado ao ajuntamento do povo de Deus. O princípio vétero-testamentário do ajuntamento do povo permanece sobre a igreja.
Há marcas que revelam a saúde da igreja, e Christian Schwarz no livro “Desenvolvimento Natural da Igreja” destaca 8 marcas do bom “ethos” de uma igreja local:
Liderança capacitadora - uma liderança que se multiplica e não centraliza.
Ministérios orientados pelos dons – quando cada um é incentivado a usar os seus dons e desenvolver ministério, incluso de pregação, ensino e liderança pública.
Espiritualidade contagiante – onde há uma preocupação com a vida cristã prática.
Estruturas funcionais – cujos programas e atividades façam sentido e não existam só porque sim.
Culto inspirador – as pessoas gostam de cultuar juntas. É bom estar ali não só porque a Bíblia diz, mas porque há uma atmosfera terapêutica.
Grupos familiares ou Pequenos Grupos - os pequenos grupos de crescimento onde acontecem as partilhas, o ensino, o pastoreio e a oração em conjunto.
Evangelização orientada para as necessidades – cujos programas e iniciativas sejam relevantes no alcance de novas pessoas e do servir à comunidade onde está inserida.
Relacionamentos marcados pelo amor fraternal – dizem respeito ao testemunho de relacionamentos curadores e que edificam.
Se assim vivemos, estaremos “DISCERNINDO O CORPO” adequadamente (1 Co. 11.29), e seremos uma Igreja Tov (de bondade), cujo ETHOS é uma extensão dos Apóstolos e da Igreja Primitiva.
E, especificamente, sobre LIDERANÇA?
Qual o “ethos” saudável de uma liderança local?
Qual seria a marca que você pode ver nas Escrituras? Pensei, basicamente, em:
Liderança partilhada
Espírito de servo a começar do pastor, sem ênfase no poder
Liberdade para a admoestação e a confissão mútuas
Ministério com as crianças, numa perspectiva das crianças serem contadoras da Grande História
Adolescentes e jovens comprometidos com a santidade e a evangelização
Casais e famílias que servem juntos
Famílias que cultivam vida devocional
Tempo de mesa como igreja
Encontros de discipulado, formal e informal
Celebração cristocêntrica
Termino com uma pergunta de reflexão que revisito com frequência:
qual tem sido o “ethos”, a saúde local, da sua liderança e da igreja onde serve hoje?