Migrações, Mobilidade e Missões: A Identidade Intercultural da Fé Evangélica na Era Global
A missão cristã sempre esteve em movimento. Com foco especial na realidade portuguesa, este artigo analisa os fluxos migratórios, a diversidade crescente, o papel das igrejas evangélicas como espaços de inclusão e a urgência de viver uma hospitalidade prática e teológica. Numa era de divisões e desconfiança, seremos nós Igreja capaz de construir pontes com fé e coragem?
POVOS E MOVIMENTOS
Elsa Correia Pereira
8/5/20257 min read


Migrações, Mobilidade e Missões
A Identidade Intercultural da Fé Evangélica na Era Global
Na era global, marcada por uma mobilidade sem precedentes, a Fé Evangélica reencontra a sua vocação original: ser uma fé em movimento.
Desde os patriarcas bíblicos até às igrejas multiculturais em Portugal e na Europa do século XXI, a migração tem sido um dos meios primordiais de expansão da fé cristã. A compreensão da mobilidade humana como parte do agir missional de Deus é uma chave essencial para a missão contemporânea, sobretudo em países de destino como Portugal.
A Missão no Caminho: A Bíblia e os Migrantes
A história bíblica é, essencialmente, uma história de migrantes. Deus chama Abraão a deixar sua terra (Génesis 12), conduz Israel pelo deserto (Êxodo), exila e restaura povos (Jeremias, Daniel), e encarna-se em Jesus como um menino refugiado no Egito (Mateus 2:13-15). A missão cristã nasce da mobilidade: o Pentecostes (Atos 2) acontece num contexto de pluralidade cultural e linguística, e as epístolas paulinas são dirigidas a comunidades cosmopolitas, muitas vezes compostas por migrantes.
O próprio Jesus identifica-se com o estrangeiro: “Fui estrangeiro e me acolheste” (Mateus 25:35), ligando o acolhimento à própria salvação.
Lausanne e os Desafios da Mobilidade Global
O Movimento Lausanne, iniciado por Billy Graham e John Stott em 1974, proclama “toda a igreja, levando todo o Evangelho a todo o mundo” (Lausanne Covenant, 1974). Desde o Compromisso da Cidade do Cabo (2010) até à Conferência de Seul (2024), Lausanne reconhece que a mobilidade humana é uma das maiores oportunidades missionárias do nosso tempo.
Como resultado de um processo de escuta colaborativa com milhares de líderes cristãos em todo o mundo, foi publicado em abril de 2024 o relatório global The State of the Great Commission, que serviu como base estratégica de trabalho no Congresso Lausanne IV, realizado em Seul em outubro de 2024. Neste relatório foram identificados 25 gaps (em tradução literal, "lacunas") — áreas críticas onde a missão global da Igreja enfrenta desafios significativos, mas também oportunidades urgentes para cooperação, inovação e avanço do evangelho no século XXI.
Enquadrados neste tema encontramos 4 oportunidades de relevância, assim descritas pelo Movimento Lausanne Global:
Gap 4 – Islão
Com o crescimento global do Islão, este gap desafia a Igreja a responder com clareza teológica, humildade e amor. Ser embaixador da mensagem de Cristo em contextos islâmicos exige relações de confiança, discipulado contextualizado e parceria com cristãos convertidos do Islão. O foco está numa missão relacional, coerente e enraizada no testemunho de Jesus.
Gap 6 – Povos Menos Alcançados
Milhões de pessoas vivem sem acesso significativo ao Evangelho da Paz. Este gap convida a Igreja global a colaborar de forma estratégica, traduzindo as Escrituras, capacitando líderes locais e priorizando contextos esquecidos. A meta: um discipulado eficaz, liderado por crentes das próprias culturas, até 2050.
Gap 14 – Missão Policêntrica
A missão do século XXI não deve fluir de um único centro, mas de muitos. Este gap propõe uma abordagem multipolar, com várias expressões de liderança, recursos e estratégias. Valorizando o Sul Global, as diásporas e os contextos urbanos, a missão torna-se verdadeiramente colaborativa e global.
Gap 19 – Movimentação dos Povos
As migrações e deslocações forçadas estão a redesenhar a missão global. Este gap chama a Igreja a acolher, discipular e cooperar com migrantes, refugiados e comunidades em mobilidade. Eles não são apenas alvo da missão — são agentes ativos no avanço do Reino de Deus.
Gap 22 – Etnicidade e Racismo
Tensões raciais e divisões étnicas continuam a ferir o testemunho do Cristianismo. Este gap exorta-nos a viver a reconciliação bíblica, desafiar o racismo estrutural e cultivar comunidades onde todas as culturas sejam honradas. A unidade na diversidade é parte essencial da missão.
Estes pontos desafiam-nos a abandonar uma missão colonialista e a abraçar uma missão relacional, encarnada e transnacional.
Versículos para meditação:
Mateus 25:35 – “Fui estrangeiro e me acolheste.”
Hebreus 13:2 – “Não vos esqueçais da hospitalidade...”
Gálatas 3:28 – “...não há judeu nem grego...”
Levítico 19:34 – “O estrangeiro que habita convosco será como um natural...”
2 Coríntios 5:18–20 "Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação,
a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus."
Principais fonteS:
AIMA/SEF (2025): https://sol.sapo.pt/2025/07/29/governo-esclareceu-presidente-sobre-dados-da-imigracao
Compromisso da Cidade do Cabo (2010): https://lausanne.org/content/ctc/ctcommitment
Lausanne Covenant (1974): https://lausanne.org/lausanne-covenant
Lausanne Movement, Missões Globais Policêntricas - Lausanne Movement
OECD (2024): https://www.oecd.org/en/publications/2024/11/international-migration-outlook-2024_c6f3e803/full-report/portugal_d44fe0e7.html
Pereira, E. C. (2025). Estudos em Sociologia da Religião (em curso), Universidade do Porto.
Pew Research Center (2020): https://www.pewresearch.org/religion/2020/12/07/religion-and-migration-around-the-globe/
Rosa, H. (2024) Democracy needs religion. Cambridge, Polity Press.
O Movimento Lausanne Portugal disponibiliza workshops estratégicos, adaptados ao contexto, para ajudar líderes e equipas a compreender melhor as religiões e culturas emergentes em Portugal — e a discernir formas práticas de acolhimento, testemunho cristão e discipulado.
Contacta-nos - aqui.
Outras Religiões e o Evangelho do Encontro
A presença de muçulmanos, hindus, sikhs e budistas em Portugal constitui uma oportunidade de testemunho e amizade. O Compromisso da Cidade do Cabo recomenda uma partilha do Evangelho fiel, mas marcada por amor e escuta (CTC, 2010, Seção IIC). E 1 Pedro 3:15 exorta: “Estai sempre preparados para responder com mansidão e temor.”
Ser embaixador do Evangelho de Cristo na era global é antes de tudo servir, ouvir, acolher e aprender — não conquistar, rotular ou vencer.
As Igrejas Evangélicas como Espaços de Sociabilidade Inclusiva
Em tempos de xenofobia, racismo estrutural e discursos nacionalistas, as igrejas evangélicas têm-se revelado entre os espaços mais inclusivos da sociedade europeia. Congregações evangélicas em Portugal reúnem pessoas de dezenas de nacionalidades, faixas etárias, línguas, trajetórias pessoais e estilos culturais .
Mais do que sociabilidades periféricas, esses espaços funcionam como:
a) territórios de ressonância, numa era de aceleração, onde as pessoas se sentem vistas e escutadas. Jesus caminhava entre as multidões, via as pessoas que se sentiam invisíveis e discriminadas, escutava os seus pedidos e atendia-os.
b) Ecologias de cuidado, com redes de apoio afetivo, emocional e prático;
c) Espaços de acolhimento em estações liminares da vida, onde identidades se refazem em liberdade e fé.
Essas igrejas são pólos de coesão social e empoderamento espiritual, gerando pontes onde o mundo ergue muros.
A Hospitalidade como Testemunho
Hebreus 13:2 recorda: “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois alguns, praticando-a, acolheram anjos.”
O mandamento do Levítico 19:34 é ainda mais radical: “O estrangeiro que habita convosco será como o natural entre vós.”
Mais do que tolerar, o Evangelho de Jesus convida-nos a pertencer uns aos outros — a criar laços duradouros em vez de barreiras temporárias. A missão, hoje, passa pela mesa partilhada, pela amizade sincera e pela inclusão prática.
Migração como Estrutura Missional
Em Portugal, os dados mais recentes da AIMA indicam 1.546.521 residentes estrangeiros legais no final de 2024, podendo ultrapassar 1.600.000 após as regularizações em curso. Isso representa cerca de 15% da população portuguesa — um crescimento vertiginoso face aos 4% registados em 2017 (AIMA, 2025; OECD, 2024).
A maioria dos migrantes vem do Brasil, Índia, Nepal, Angola, Guiné-Bissau, Bangladesh e Ucrânia — muitos com fé cristã, trazendo novas expressões de louvor, liderança e discipulado. Todo o cristão migrante é um missionário.


Segundo o Pew Research Center, os cristãos representavam 47% dos migrantes internacionais em 2020 — o maior grupo religioso global (Pew, 2020). Na Europa, 56% dos migrantes são cristãos; na América do Norte, 68%.
Conclusão: Uma Missão que vem das margens


A história do cristianismo mostra que os grandes movimentos missionários não surgiram das cúpulas, mas daqueles que estavam longe do centro institucional. Não foram os poderosos, mas os migrantes, os excluídos e as mulheres que carregaram a fé pelo mundo.
A era global traz novamente esse padrão: a missão não está a vir do centro para a periferia, mas da periferia para o centro. É uma missão policêntrica com todos os recursos que isso nos traz.
Como lembra o Compromisso de Seul (2024): “A missão não é da Igreja — é de Deus. E Ele já está em movimento entre os povos em trânsito.” (Seoul Statement, 2024)
Portugal, foi durante tantos séculos terra de partida e agora também é terra de chegada, é chamado a tornar-se casa de reconciliação (2 Coríntios 5:18-20). A igreja que acolhe o migrante acolhe o próprio Cristo.


Elsa Correia Pereira
Socióloga, bolseira de investigação, professora de Sociologia, congrega na AD Encontro Vida.
A Elsa Correia Pereira colabora no Movimento Lausanne desde 2019.
Os cristãos são pessoas de paz e isso deve estar bem patente em tudo o que fazemos, dizemos e ensinamos.
“Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz seja nesta casa!
Se houver ali um filho da paz, repousará sobre ele a vossa paz; se não houver, ela voltará para vós.” Lucas 10:5-6