Com olhos de ver - um chamado de Deus à Arte
Beleza ou Verdade? Este artigo convida-nos a recuperar o olhar profundo — “olhos de ver” — que reconhece Deus como o primeiro artista e a luz como primeira expressão de beleza. Da criação ao redimir da humanidade, vemos que a Arte não é apenas estética, mas uma linguagem que comunica verdade, justiça e amor.
ARTES E CULTURA
Sarah Montino
8/19/20255 min read


Com olhos de ver - um chamado de Deus à Arte
A narrativa bíblica mostra-nos que sempre houve uma tensão entre a fé e a imagem. No jardim do Éden, a serpente tentou Eva contando-lhe algo: que Eva e Adão não tinham olhos de ver (Gn 3.5). Com os olhos supostamente abertos por causa do ato que se seguiu àquela oferta, os seres humanos passaram a subverter tudo o que viam.
A humanidade passou a objetificar corpos e a fazer de esculturas moldadas com ouro e barro, ídolos. Portanto, a confiança naquilo que é visível tornou-se o oposto da fé. O povo de Deus seria agora primeiramente o povo da Palavra.
Como, então, a Arte pode fazer parte da missão de Deus neste mundo?
Imagem e semelhança de Deus
O termo imagem é muito importante para o sentido de Arte abordado neste texto, que é o das artes visuais. Ou seja, excluímos em parte aqui a música ou até mesmo as artes performativas (teatro), considerando sobretudo a pintura, o desenho, a escultura, a gravura, a fotografia, etc.


Voltemos atrás, então, à criação dos primeiros seres humanos em Génesis 1.26. Existem muitas hipóteses sobre o que significa o ser humano ter sido criado à imagem e semelhança de Deus dentro da teologia cristã. Esta pequena secção tem a ousadia de apresentar mais uma visão do que pode ser compreendido como imago Dei.
Uma das primeiras características de Deus apresentada neste mesmo livro, o livro de Génesis, é que Deus vê. A primeira criação foi aquela que é o objecto de estudo de todo o artista visual: a Luz. Após a constatação de que a terra estava sem forma e vazia, o Criador pôs luz, e é a primeira vez que a Bíblia menciona Deus a ver e a relacionar o que vê como bom. A existência da luz era boa pois permitia que as novas formas e dimensões da sua criação fossem vistas. Deus criou um mundo para a contemplação.
Deus foi então o primeiro a “olhar com olhos de ver”, expressão do português europeu que transmite a ideia de alguém que faz uma observação profunda, cuidada, que distingue o bem do mal. E por falar em distinguir o bem do mal, o versículo 6 de Génesis 3 prova que a serpente estava a enganar Eva com uma meia verdade, pois, antes de pecar, Eva viu. Viu que aquela árvore era boa e agradável como todas as outras que haviam sido criadas por Deus (Gn 2,9). A habilidade de ver era-lhe intrínseca! Mas, já no sentido de ver de forma a perceber o mal, os primeiros seres humanos não eram capazes — nem antes de pecarem. Há uma dependência de Deus para avaliar o que é bom e o que é mau.
A luz
Não é sem propósito que a luz é tão explorada na Bíblia. É associada ao conhecimento de Deus (Salmo 119.105) e é usada para referenciar o próprio Jesus (João 8.12). Na história da Arte, a luz é fundamental para determinar estilo, cor, profundidade, sensação… Desde um desenho rupestre de animais em Vila Nova de Foz Côa, provavelmente feito com a iluminação de uma tocha, até à rosácea da catedral de Notre-Dame, em Paris, que é vista nas suas cores por meio dos raios de sol que a trespassam: a luz guia a nossa perceção de Arte.


O que é arte?
Essa é uma pergunta cuja resposta tem sido transformada em cada período histórico. Um famoso historiador/filósofo chamado Gombrich define arte como o «(...) exercício de atividades tais como edificação de templos e casas, a realização de pinturas e esculturas, ou a tecelagem de padrões», e «nenhum povo existe no mundo sem arte». Parece, então, que arte é tudo o que se faz com as mãos.


Diante disso, talvez mais importante do que dar uma resposta exacta ou exaustiva, seria a consideração de parâmetros para a educação de um olhar atento, que saiba discernir, questionar e ler. Para isso, temos orientação. Que a Arte nos ajude a amar a Deus e ao próximo, por meio do cultivo da realidade presente, para a glória de Deus.
É uma forma de expressar por meio de linguagem não-verbal, como Deus, o primeiro artista, fez ao dar forma ao que estava sem forma. Um autor chamado Hans Rookmaaker disse no livro Filosofia e Estética que «A arte sempre colocou em termos plásticos a realidade humana». E falamos de realidade concreta: árvores, pessoas e objectos, e realidade imaterial: formas de poder, sentimentos, valores, Deus, vida após a morte, etc.
Muitas vezes, ao aproximarmo-nos das obras de arte, colocamo-las em categorias de gostar ou não gostar, achar feio ou achar bonito. “Um politeísmo de beleza” refere-se ao termo de Gombrich sobre as referências de beleza serem muitas vezes baseadas nas emoções ou valores de cada grupo. Nesse sentido, há uma oferta de definições do que é belo, e os cristãos devem ter as Escrituras como o seu referencial. Neste caso, o que é belo não é o que é perfeito, mas o que é redimido. Assim como o Criador não nos deitou fora, mas, como um artista paciente, trabalha em nós e no mundo ao longo de séculos e séculos, por meio de uma performance cósmica vista na encarnação do Filho de Deus. O que é belo é aquilo que comunica verdade, que é sacrificial. É algo que provoque a reflexão, a justiça, a pureza, o amor, entre outros. A experiência estética deve comover, deve questionar os afectos e alterar os padrões do que é bom. Para uma visão acurada como a d’Aquele que criou a humanidade e não só viu que era bom, mas que era muito bom.
Na verdade, tem relação com algo que se cria — mas não só. O que nos faz pensar na perspectiva prática de que, além de se criar com as mãos, há uma intenção por trás, já que toda a arte é criada por alguém.


Sarah Montino
Formada em Pedagogia e Teologia, atualmente dedica-se ao estudo das Artes Visuais.
É voluntária nos ateliês comunitários da Serve The City no Porto e é parte da direção do acampamento de adolescentes do Centro Bíblico de Esmoriz.
Instagram: @_sarahmontino
Medium: @sarahmontino
Referências:
Makoto Fujimura – Culture Care
Roy Clouser – O Mito da Neutralidade
Rookmaaker – A Arte Não Precisa de Justificação
Miroslav Volf – Uma Fé Pública